terça-feira, 18 de janeiro de 2011

As guardas municipais e seu mandato na segurança pública

Por Carolina de Mattos Ricardo*
O Brasil possui 786 municípios com guarda municipal (MUNIC2006, IBGE). Trata-se de
um número considerável se levamos em conta os 5560 municípios brasileiros. As
guardas existem há muito tempo, mas foi a partir de 2000, com a ampliação do papel
dos municípios na segurança pública, que passaram a participar mais ativamente do
debate sobre a segurança pública no país, ganhando visibilidade.
Desde então, as guardas vêm se fortalecendo e se constituindo em um importante ator
no sistema de segurança pública no país. As guardas se organizaram e iniciaram o
debate sobre a ampliação de seu poder de polícia. O governo federal investiu em
formação e recursos para equipar e formar as guardas municipais, tendo, inclusive,
elaborado uma matriz curricular nacional. Congressos e encontros de associações de
guardas municipais se multiplicaram e passaram a ocorrer nos âmbitos regional,
estadual e nacional.
No entanto, ao mesmo tempo em que houve esse fortalecimento, algumas fragilidades
da organização atual das guardas municipais no Brasil ganharam destaque. A principal
delas é uma espécie “crise identitária” que permeia as guardas municipais. A partir da
pesquisa do IBGE sobre municípios brasileiros (MUNIC2006), percebe-se que a maioria
dos comandos é composta por policiais civis, militares e federais (cerca de 55%) e em
relação à formação e treinamento, cerca de 17% das guardas não oferecem
treinamento ou formação aos profissionais que ingressam na corporação. Quando
analisamos os tipos de atividades desempenhadas pelas guardas municipais, verifica-se
um amplo conjunto, como proteção aos bens, serviços e instalações do município
(95%), segurança em eventos e comemorações (84%), auxílio ao público (83%), ronda
escolar (72%), auxílio à Polícia Militar (71%) e auxílio à Polícia Civil (55%). Os requisitos
de ingresso e o próprio regime de trabalho a que se submetem são também
extremamente variados.
O fato das suas atividades não se limitarem à proteção de bens, patrimônios e serviços
municipais, de haver uma significativa porcentagem de guardas no país sem formação,
o fato de boa parte das guardas serem comandadas por atores de outras forças de
segurança: tudo isso dificulta a consolidação de uma identidade profissional.
Não há nada que defina a atribuição das guardas municipais além do parágrafo 8º do
artigo 144 da Constituição Federal, que estabelece que às guardas municipais cabe a
proteção de bens, serviços e instalações municipais, conforme dispuser a lei. Um
detalhamento de sua atribuição fica a cargo das diferentes legislações municipais, que
devem respeitar a definição ampla dada pela Constituição Federal, mas que podem
variar consideravelmente de município para município. Como não há um padrão na
sua atuação e tampouco uma diretriz clara que defina sua missão e que regulamente e
oriente suas atividades, cada guarda municipal pode se conformar de acordo com as
características locais. Isso não seria um problema se houvesse baliza anterior,constitucional, que definisse mais claramente a missão e o mandato das guardas
municipais, ao invés de mencionar vagamente suas atribuições.
Assim, esse vício de origem contribui para que o cenário em relação às suas
características institucionais seja extremamente plural e pouco padronizado,
reforçando sua crise de identidade institucional.
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A limitação da definição inicial sobre a atribuição das guardas municipais (que não
define sua missão nem seu mandato) e a falta de uma regulamentação mais precisa
implicam em dificuldades para o próprio trabalho cotidiano das guardas, que muitas
vezes ficam sem saber o limite de sua atuação, que pode variar de acordo com o perfil
do prefeito da vez, que pode entrar em conflito com as polícias estaduais, além de
tornar mais difícil a fiscalização e controle sobre as suas atividades. Esse problema se
agrava na medida em que, na prática, as guardas se tornam mais relevantes na
atividade cotidiana do provimento da segurança.
Boa parte da discussão em torno das guardas municipais se dá em relação à atribuição
do poder de polícia às mesmas. No entanto, essa é uma discussão importante, mas
secundária e que deve vir depois da análise mais aprofundada sobre qual é de fato o
mandato das guardas municipais na segurança pública.
Assim, para valorizar e aprimorar o trabalho das guardas municipais no país, é
necessário voltar o debate a esse ponto. Discutir e definir o mandato das guardas
municipais significa muito mais do que discutir a atribuição do poder de polícia.
Significa discutir o âmbito de sua atuação, ou seja, o objeto de sua atuação, com os
requisitos e restrições, abrangência territorial e situações a serem trabalhadas.
Significa, também, discutir o alcance da sua atuação, ou seja, a exclusividade,
concorrência, sobreposição ou compartilhamento das atribuições (nesse caso, discutir
em conjunto com a atribuição das outras forças policiais) e significa, por fim, discutir os
contornos da sua atuação, com “modos e meios” de agir ou fazer, tipos particulares de
capacidade de ação e os requisitos expressos em determinadas legislações, normas ou
procedimentos
2
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Apenas com essa definição, em âmbito nacional, é que as guardas poderão seguir
realizando seu trabalho como ator essencial ao sistema de segurança pública,
respeitando e considerando as especificidades de cada localidade em que atuam.
*Advogada e socióloga, mestre em Filosofia do Direito e Teoria Geral do Estado pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é coordenadora da Área de Gestão
Local de Segurança Pública do Instituto Sou da Paz.

1
É importante ressaltar que, em se tratando de policiamento, a capacidade de se adaptar às
características locais é essencial. E essa capacidade as guardas têm e não podem perder. Contudo essa
capacidade será tanto mais efetiva e legítima, quando estiver balizada por um mandato mais claro para
as guardas municipais

(artigo cedido ao Ilanud em junho de 2009)